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segunda-feira, junho 01, 2009

O agnóstico 

Desde criança frequentou toda sorte de culto, do candomblé ao seicho no ie. Influenciado pela mãe, de fé inabalável, encarava qualquer crença como um fato da vida. Rezava, benzia-se ao acordar e, como era de se esperar, foi matriculado em escola católica. Meio que na inércia, faria primeira comunhão e crisma, chegando até a participar de um encontro de jovens. Gostava das aulas de religião, quando ficava fascinado por milênios de história de rica simbologia. Aos oito anos, descobriu-se um apaixonado por futebol e começou a relacioná-lo à religião que tão fortemente o impregnava.

Eram anos estéreis em termos de conquistas para a seleção canarinho e, como se sabe, fé e dificuldade andam de mãos dadas. Avizinhava-se a Copa da Itália e ele, do alto de seus dez anos, percebia que algo não ia bem entre os comandados de Lazaroni, talvez em decorrência do episódio em que os jogadores cobriram a marca da empresa patrocinadora em algumas fotos. Lamentou quando viu o cruzamento das oitavas de final e assistiu ao jogo na companhia de mais de trinta convidados que sua mãe convidara para uma festa em casa. Considerou tudo aquilo um sacrilégio, copa do mundo era coisa séria demais pra ser assistida em meio a Ray Conniff, Camparis e canapés. No fundo, sabia que o Brasil passava por uma entressafra de talentos.

Três anos se passaram e vieram as famigeradas eliminatórias e o fantasma da eliminação diante do Uruguai no Maracanã. Nosso guri era então adolescente e encantou-se com a rebeldia de Romário, que esbanjou genialidade e colocou o Brasil na copa. Começava ali uma admiração que transcendia a relação ídolo-fã.

Prometera levar a copa mais a sério e assim o fez. Leu todos os guias de cabo a rabo, assistiu a todos os jogos e acompanhou o escrete com devoção total. Antes dos jogos, rezava e fazia promessas. Depois, pagava-as com juros e prontidão. Acreditava piamente que a fé do povo, a começar pela sua, traria o caneco depois de longos 24 anos. Curiosamente, jamais flertou com a superstição, esta prima distante da religião.

A conquista, da maneira hercúlea como aconteceu, corroborou a certeza de que reza ganha jogo. Romário, como ele suspeitava, era mesmo o Messias que surgira da Vila da Penha para redimir o país do futebol. Jamais se esqueceria de sua mãe rezando no terraço enquanto Taffarel entrava em ação no Rose Bowl.

Entre os catorze e os dezoito anos, tempos confusos. Fora de campo ele leu muito e adquiriu convicções socialistas, segundo as quais a religião é o ópio do povo. Leu Descartes, que explicou matematicamente a existência de Deus. Leu Darwin, Nietzsche e Freud, acusados de serem os assassinos de Deus. Dentro de campo, passou a jogar em nível mais competitivo. Quando se contundia, rezava para acelerar a recuperação. Antes dos grandes jogos, fazia promessas, invariavelmente cumpridas depois. Ficava nebulosa a fronteira entre força mental e fé, possivelmente sinônimos. No fundo, ainda acreditava.

Foi quando pediu, como presente por ter entrado na faculdade, para assistir ao mundial da França in loco. 94 lhe enchera de esperança e tudo indicava que Romário e Ronaldo levariam o Brasil ao penta. O corte do primeiro o levou aos prantos em público, diante da coletiva em que o Baixinho, o Messias, chorou como criança. Ronaldo voava baixo e haveria de honrar o genial parceiro de ataque.

O time era instável e ele retomou a rotina de rezas e promessas. Chile, Dinamarca, Holanda, este o jogo mais sensacional de sua vida. A vitória nos pênaltis confirmava a força da fé. Naquela noite, quadruplicou as promessas tendo em vista o duelo de 12 de julho.

Vieram o desastre, a humilhação e a decepção. Diante da maior tristeza de sua vida, voltou ao hotel e simplesmente concluiu que Deus não existia. Mandou as promessas, o terço e a fé às favas e converteu-se ao agnosticismo.

A copa da Ásia de certa forma vitaminou a aversão adquirida quatro anos antes. Afinal, ele viu a família Scolari ganhar os sete jogos de junho sem a necessidade de uma ave-maria sequer. Na final, encontrou-se com os amigos num churrasco e, como que extravasando o rancor de Saint Denis, apontou para Ronaldo no vídeo e vociferou diante dos quarenta convidados presentes: “este cara fez mais por mim do que Jesus”.

Algumas pessoas acreditam num fenômeno chamado de “crise de um quarto da vida”, que costuma acometer as vítimas em torno dos vinte e cinco anos de idade. Nosso personagem parece ter passado por ela. Após os 24 anos, sentiu-se mais maduro e começou a olhar a vida de outra forma, incluindo o futebol. Isto não impediu que sofresse a habitual “tensão pré-copa”, quando a contagem regressiva para o torneio da Alemanha culminou numa ansiedade insuportável. Em meio ao choque de realidade, percebeu o oba-oba que reinava no grupo de Parreira e lembrou-se de outro oba-oba, aquele na sala de sua casa dezesseis anos antes.

Consumiu avidamente o torneio, e salivou diante do prato frio da vingança a ser saboreado nas quartas de final. Sucumbiu diante de Zidane, chorou que nem criança novamente e, num momento de reflexão, percebeu que religião e futebol são um fenômeno da mesma natureza, que atendem a mesma necessidade humana, mas que não, Deus não é o menino do placar.

Recentemente nosso amigo esteve na Índia e desde então tem dedicado um bom tempo contemplando o Cristo Redentor. Inveja as pessoas de fé e voltou a pensar em Deus, desta vez sem chuteiras. Aposta suas fichas na Argentina na copa da África e sonha em ser campeão do mundo em um Maracanã lotado.

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